RENASCITUDES

domingo, 28 de outubro de 2012

Lição de Sol



Acabara de mudar-me da zona sul do Rio de Janeiro para a Tijuca, bairro da zona norte, tão ameaçado pela violência carioca quanto toda a cidade. A gente vai contrapesando a idade, os conceitos, as carências e até as praticidades da fase em que nos situamos e resolvemos fazer mudanças. É certo que, apesar disso, o medo continua em nós, não deixamos de temer tudo, quase levamos uma "subvida"!

     Aluguei um apartamento agradável, com vista linear para os mais diversos prédios residenciais; vizinhos era o que não me faltava, desconhecidos, é claro! Por curiosidade ou fator ambientação, começava a especular, através das janelas, quem eram eles: se mal-encarados, curiosos, harmoniosos, desocupados, insones, tarados... O fato é que todas as minhas janelas eram muito indiscretas, tanto para eles, quanto para mim.

    No entanto, a varanda, por ser mais aberta, dava-me a sensação de que poderia disfarçar olhando para os lados, caso fosse surpreendida por algum deles. Afinal, eu também não gostaria de ser especulada!
Diariamente, antes de sair para o trabalho, dirigia-me para lá, onde, de pé, ingeria o meu rápido cafezinho. O playground, logo abaixo da varanda, até que oferecia uma bonita paisagem: árvores de meia idade, plantas bem cuidadas, silêncio (pela ausência das crianças que provavelmente ainda dormiam), e passarinhos inspirando-me a sonhar!

     Um desses dias, ao erguer um pouco a cabeça, meu olhar transpôs a vidraça de uma das janelas do apartamento em frente, deixando-me ver uma pilha de pastas semelhantes a processos normalmente estudados por advogados, juízes etc. E assim, começava eu a estabelecer um marco de identificação dos meus vizinhos, com base nos elementos que cada um deles me possibilitava captar. Tornou-se agradável a minha rotina matinal do cafezinho na varanda, principalmente por eu já acompanhar a rotina dos vizinhos com menos constrangimento e mais ousadia.

     Certa manhã, conheci o dono da pilha de processos: avistei-o sentado, lendo... , lendo... Era exatamente como o imaginara: idoso, compenetrado e limpinho. Sentava-se diante das pastas, os cabelos molhados e penteados, como se tivesse acabado de tomar banho. Percebi que havia sido colada na sua janela uma folha branca na qual fora desenhado um grande sol... muito colorido. Esse fato evidentemente aumentou a minha curiosidade; a cada dia eu constatava que isso tinha que ter algum fundamento, pois o sol nem sempre era colocado na vidraça, mas a minha ousadia cobrava que o fosse, sem que o velhinho o soubesse! Quando eu saía para o trabalho sem ter visto o desenho do sol na vidraça ficava quase transtornada, porque também não o veria à noite: quando eu voltasse para casa, provavelmente já encontraria aquele senhor dormindo, luzes apagadas.

     Uma ocasião, consegui vê-lo colocando o desenho, o que era feito como um ritual: colava-o e ali permanecia olhando-o por alguns minutinhos. Às vezes, sentava-se diante dos processos, mas o sol não era colado na vidraça...Por que não???

     Num domingo ensolarado, lá estava o velhinho compenetrado na sua leitura dos processos, mas o sol não estava colado na vidraça. Foi aí que constatei o quanto sou audaciosa: chamei-o por um "psiu" insistente; quando o velhinho me olhou apreensivo, perguntei-lhe, gritando (talvez não ouvisse bem):
     - Cadê o sol ; ...o desenho do sol ?
     Ele me respondeu, sem gritar, mas de forma que eu o ouvisse:
     - Eu a estou ouvindo muito bem e a estou entendendo, mas hoje não há sol!!
    Então apontei para o sol que iluminava aquela manhã, provando-lhe que não era verdade. O velhinho acenou negativamente com o dedo e retrucou:
     - O sol está dentro de cada um de nós; procure o seu, mas saiba lidar com ele quando estiver apagado!!!
     Sorri-lhe apenas e me retirei da varanda, buscando o meu sol, que nesse dia, por acaso, estava enfermo...; talvez por isso, inconscientemente, estivesse querendo ver o sol do velhinho!

     Passei muitos dias sem me aproximar da varanda, até que tomei coragem e procurei o sol do velhinho. Mas, dessa vez meu olhar atravessou a vidraça e...fiquei triste: o apartamento estava vazio. Nem pastas, nem velhinho, nem sol...
     Fiquei tão triste por ele ter-se mudado dali...Será que ele se incomodou com a minha ousadia? Será que preferiu sair de perto de quem não sentia o seu próprio Sol ? Olhei por alguns dias aquele espaço vazio com imensa tristeza.

    Aproximadamente um mês depois, indaguei sobre ele ao porteiro do prédio onde morava; fui informada de que havia falecido. O SOL dele permaneceu na minha mente, colado à vidraça, enquanto que o meu aplicou-me uma lição para toda a vida:

     Ainda que dentro de mim faça escuro, precisarei renascer iluminada!!!

Autoria: Ilka Vieira

Um comentário:

  1. Linda e comovente história. Com certeza onde ele estiver saberá que por um breve tempo conseguiu iluminar as suas manhãs . Acredite meu anjo, que agora ele deva estar ilumnando ,quem sabe, aqueles que nos são queridos.
    Bjs e parabéns por me emocionar com esse texto.
    TT D ' Oliveira

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